sábado, 29 de setembro de 2007

Borges e a lógica das redes (Caos fractal)

Quando Jorge Luís Borges escreveu seu livro Ficções em 1944 e O Aleph em 1949, não imaginava que esses livros seriam uma referência no campo das metáforas para explicar diversos fenômenos, incluindo aqueles que dizem respeito ao campo das teorias da Comunicação. São inúmeras as metafóras advindas de obras literárias usadas como exemplos metafóricos em textos sobre a Comunicação de hoje, mas a obra deste escritor ultrapassa espectativas. Borges é devidamente um homem de seu tempo e para além dele: os contos Biblioteca de Babel, Funes, o memorioso e O Aleph são citados como metáforas para entendermos a lógica de organização (quiçá “desorganização”) da sociologia, da matemática e da Comunicação, principalmente a comunicação em redes eletrônicas.

Apesar de contemporâneo á inúmeros estudos não só da área da comunicação, mas também dos sistemas de informação, como por exemplo a Cibernética, dificilmente Borges teria se enveredado diretamente por esses áridos campos. O escopo de Borges estava muito mais direcionado á uma metafísica per si e a literatura , do que a aplicação direta de teorias que estivessem fora desse contexto. O homem e o tempo giram um em torno do outro; o primeiro tentando agarrar o segundo e o segundo envolvendo o primeiro mergulhado na ilusão de o estar perseguindo. Sim, o tempo de Borges em macro é circular e por isso a vida um fractal, cada um contém seu tempo e história. Por isso a premissa borgiana seria o texto e seus desdobramentos em si; o mundo como um livro contendo todos os outros.

Não por acaso, Néstor Garcia Canclini em sua obra Consumidores e Cidadãos(1995), ao descrever os processos culturais de uma grande cidade usa o exemplo do conto “O Aleph” para demonstrar a rapidez vertiginosa da vida urbana atual. “Viver nesse instante gigantesco que é cada instante em uma cidade assim, assombra menos pelos milhões de atos aprazíveis e atrozes que acontecem do que pelo fato de que todos ocupam o mesmo ponto, sem superposição ou transparência.”(CANCLINI,1995) Exatamente como Aleph é a cidade para Canclini, para Borges se trata de um único ponto onde se bifurcam o tudo do tempo e do mundo, e por isso é multifacetado e multidimensional. Impossível de ser visualizado de uma única vez.

No caudal dos contos metafóricos de Borges, nos concentraremos especificamente á um conto do livro Ficções(1944). Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, o primeiro conto do livro, será usado aqui também como uma metáfora, ou melhor dizendo, uma lembrança das idéias que tomam forma. Nossa intenção, além de uma viagem ao fractal borgiano é a mesma dos demais que usaram as figuras de Borges como ilustração. Devemos pensar a velocidade caótica do processo das apropriações artísticas em rede através de uma ilustração que o conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius nos proporciona. Se este processo sempre esteve presente ao longo da criação artística da humanidade, agora ele se torna evidente, porém, para nós com os pressupostos do conto aqui sugerido como exemplo, exatamente porque este mesmo processo ocorre em demasia na atualidade. Tanta a apropriação de formas, trechos, conceitos e imagens como produtos culturais podem estar produzindo um mundo de esquecimento onde a “arte final” ganha uma circulação vertiginosa.

Tlön, Uqbar, Orbis Tertius narra um mundo imaginário onde o idealismo toma forma “concreta”. A duplicação de objetos perdidos, chamados hrönir, começam a surgir nos continentes mais antigos desse planeta: “Dos personas buscan un lápiz; la primera lo encuentra y no dice nada; la segunda encuentra un segundo lápiz no menos real, pero más ajustado a su expectativa. Esos objetos secundarios se llaman hrönir y son, aunque de forma desairada, un poco más largos”,explica o narrador.(BORGES,1944) Tlön, cujo conhecimento se consegue através de um capítulo perdido em um volume de uma enciclopédia fictícia sobre povo de Uqbar e depois, através do décimo primeiro tomo de Orbis Tertius, a enciclopédia de Tlön e finalmente, a descrição desse mundo pelo volume completo desta mesma enciclópedia. Ao final se revela que a enciclópedia Orbis Tertiurs é o produto de uma sociedade secreta de eruditos e cientistas financiados por um milionário texano. O narrador nos explica o surgimento do mundo fornecendo novos dados sobre Tlön, até que se descobre a enciclopédia Orbis Tertius na sua íntegra. Este mundo imaginário é governado, ou melhor, guiado por um idealismo platônico, um mundo onde a psicologia é a base da cultura clássica. Para Borges em seu conto, seria um mundo um tanto diferente do nosso, já que o nosso mundo, sob outras perspectivas filosóficas pode ser mais livre dessa dicotomia platônica. Porém, ao longo do conto percebemos um tom profético. Borges o finaliza dizendo que “si nuestras previsiones no yerran, de aquí a cien años alguien descubrirá los cien tomos de la Segunda Enciclopedia de Tlön...el mundo será Tlön”.

Há quem diga que hoje a arte é comunicação. Quando admiramos alguma obra de arte contemporânea dificilmente não deixamos de ter uma fruição que não passe pela cultura, pelo consumo ou reproduza alguma crítica á esse processo tão intricado e que sem dúvida, faz a tessitura da sociedade em um sentido lato sensu, que é a comunicação. Ainda que Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. de Borges nos diga sobre o idealismo platônico, seria inocência deixar de pensar essa sua lógica, que nos lembra em certos aspectos ao processo virulento de apropriação artística que, especificamente, a comunicação em rede nos proporciona. Esse processo é mais intenso ainda na atualidade devido ao amplo acesso que os usuários têm á base de dados infinita que a rede eletrônica se tornou. A lógica dos hrönir deve ser transportada e, ainda usando um termo extraído do jargão informático, pode ser recortada do conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. Qualquer metáfora borgiana nos dirá, a priori, sobre um modelo filosófico, mas que em sua essência também nos fala sobre uma lógica da existência contemporânea. Como não pensar no conto Biblioteca de Babel sem fazer uma referência ás máquinas algorítmicas de Félix Guattari, ou até mesmo no conceito de Mil Plateaus que este mesmo filosófo concebeu em parceria com Gilles Deleuze?

Também, não por acaso, veremos em meio á tanto, os objetos artísticos produzidos pelo esquecimento ou por temor á este. Podemos ironicamente, recordar a aqui o conceito de Aura de Walter Beijamin, profético como Borges,que a definirá como uma trama singular de espaço e de tempo: a única aparição de uma realidade longínqua, por mais próxima que esteja. (BENJAMIN,1936). Tanto o objeto artístico único reificado nos museus quanto sua reprodutibilidade podem ser tratados aqui como o medo do esquecimento ou o culto á memória. A reprodutibilidade técnica que para Benjamin diminuiria a “aura” do objeto artístico pode ser também a instauração de um culto mnemônico. Não seria a circulação de imagens da Gioconda de Da Vinci, por exemplo,uma maneira de reter sua imagem junto a memória tão fugidia, trazer para perto o objeto de culto á uma memória artística instaurada? Não seriam também as fotos de família ou os objetos de recordação dessa família esse ritual ligado á um tempo irreconstituível? Ambos exemplos poderiam ser manifestações dos hrönir borgianos como instrumentos de viagem no tempo e na memória, como dispositivos para as narrativas do intrinsicamente inapreensível. O que dizer, por exemplo, da nova tendência do mercado editorial sobre os “almanaques das décadas”, como se cada década contesse um século, devido á tamanha intensidade de circulação da informação?

Talvez a aura realmente se perca em uma cultura onde tanto a circulação de imagens e objetos são cada vez mais reproduzidos sob a ética do consumo capitalista. A miniaturização de dispositivos de gravação como a câmera por exemplo possibilita a circulação infinita de imagens e em devidas proporções e contextos, coadunada com as redes informáticas possibilita essa objetificação da memória dentro dessa mesma lógica de circulação. Não é um despropósito que o mundo de Tlön tenha sido inventado por um milhonário estadunidense e menos ainda seria a lógica de surgimento dos hrönir, semelhante a lógica de reprodução vertiginosa de imagens e outros produtos culturais do sistema capitalista. Há ainda a lógica de um resquicío maléfico de um sistema positivista de pensamento que impera tanto na cultura estadodunidense quanto na lógica capitalista em geral. Porém, é importante frisarmos que a lógica dos hrönir de borges contém em si uma dupla lógica: tanto essa lógica perversa de um idealismo amarrando o objeto\idéia, mas também uma lógica do devir constante que é o da criação artística em redes. Reforçando, não é por acaso que as figuras, modelos e metáforas de Borges são amplamente usadas no território acadêmico e para explicar a lógica de produçao das redes eletrônicas.

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